sexta-feira, 29 de março de 2013

Fichamento de livro: Restauro, de Viollet-le-Duc


Viollet-le-Duc
Frequentemente ouvimos falar sobre o restauro de um bem arquitetônico, visitamos um palacete ou museu restaurado ou vemos algumas imagens. 

Mas o que está por trás da teoria do restauro? Quais são os teóricos que fizeram história acerca do tema e hoje são estudados pelos restauradores? Será que a visão deles hoje é amplamente aceita ou é considerada ultrapassada?  

Hoje nós vamos ver o fichamento do livro Restauro, de Viollet-le-Duc. A primeira versão em língua portuguesa do verbete “Restauro” de Eugène Emmanuel Viollet Le Duc, feita por Odete Dourado, tem como proposta a afirmação de Viollet Le Duc como um dos maiores teóricos da história da arquitetura europeia, ao lado de Leon Battista Alberti, mas também o reconhecimento de seu pioneirismo no que desrespeito às novas possibilidades da utilização do ferro na Arquitetura Moderna. Além disso, a publicação destaca a plena inserção de Le Duc no âmbito das contradições do século e do movimento racionalista do século XIX.

Viollet-le-Duc, ao pensar no conceito moderno de restauração, estabelece os princípios de intervenção em monumentos históricos e uma metodologia para tal em seu texto chamado Restauro. Para explanar seus conceitos, ele utiliza quase sempre a arquitetura religiosa, descrevendo exemplos de algumas situações que poderiam se apresentar diante do restaurador e procedimentos passíveis de serem aplicados a elas, enfatizando que ao intervir, estando o restaurador diante de duas opções distintas de intervenção, “a adoção absoluta de um dos dois partidos pode oferecer perigos, e que é necessário, ao contrário, não se admitindo nenhum dos dois princípios de uma maneira absoluta, agir em razão das circunstâncias particulares”. Sua racionalidade, lógica e coesão de ideias evidenciam a importância dos levantamentos detalhados do edifício e atuação baseada em circunstâncias particulares a cada projeto. Para ele, princípios absolutos poderiam levar o restaurador a resultados incoerentes.

Palavras-chave:
         História da Arquitetura, Patrimônio Histórico e Cultural, Restauro.

Versão do livro On Restoration
O texto se inicia com uma consideração acerca do conceito de restauração, que para Viollet-le-Duc não significa o ato de conservar, reparar ou refazer a obra, mas restitui-la a “um estado de inteireza que pode jamais ter existido em um dado momento”. Le-Duc viveu na França em uma época em que a restauração se firmava como ciência, e logo ele afirma que tanto a palavra como a coisa são modernas. A partir de então ele desenvolve o texto na busca do significado da palavra restauro na história das civilizações. Ele evidencia que na Ásia, sempre que um templo ou palácio estivesse degradado pela ação do tempo, construía-se outro ao seu lado, enquanto isso, na Roma Antiga, refazia-se os edifícios. Ele deixa sua visão de restauração quando cita que os gregos “longe de restaurar, ou seja, de reproduzir exatamente as formas dos edifícios que tinham sofrido degradações”, imprimiam a marca de sua época nos trabalhos que julgassem necessários.
Mais adiante podemos perceber sua visão positivista quando diz que o tempo em que viveu assumiu, até então, postura singular em relação ao passado, procurando “analisá-lo, compará-lo, classificá-lo e formular sua verdadeira história” seguindo os progressos da humanidade. Para ele, esta necessidade de analisar o passado, deve-se justamente à rapidez dos progressos, e tal trabalho retrospectivo proporcionaria a previsão de problemas futuros, facilitando, por consequência, suas soluções.
O que distingue a sua época é exatamente o estudo menos parcial do passado, provocando o renascimento político, social, filosófico, artístico e literário e, logo, os perscrutadores do passado são obrigados a vencer os preconceitos das pessoas que veem nestas ações a perda de tradição.
Passadas estas constatações, Viollet-le-Duc fala sobre a reação dos arquitetos e o desenvolvimento da arquitetura, quando comparada às outras artes. Segundo ele, por volta do fim do primeiro quarto do século, os estudos literários sobre a Idade Média estavam bastante desenvolvidos, enquanto os arquitetos não tinham sequer superado seus preconceitos aos arcos ogivais das catedrais góticas. As igrejas medievais, devastadas durante a Revolução, estavam abandonadas desde então. Segundo ele, “em todo caso, estas frases vazias, fizeram com que diversos artistas se pusessem a examinar com curiosidade estes restos dos séculos de ignorância e de barbárie com a ajuda do Museu dos Monumentos Franceses, e de algumas coleções. (...) Era necessário esconder-se para desenhar aqueles monumentos construídos pelos godos, como diziam alguns doutos personagens.” O autor então cita o espírito crítico de Vitet, que em 1830 foi nomeado Inspetor Geral dos Monumentos Franceses e, no ano seguinte, endereçou ao Ministro do Interior um relatório sobre as inspeções feitas por ele das províncias do Norte, considerado uma obra prima nesse gênero de estudos. Le-Duc acreditava que se este gênero de trabalho, aplicado aos monumentos medievais, poderia gerar resultados ainda mais úteis. Para ele, Vitet foi o primeiro a se preocupar com o restauro criterioso dos monumentos antigos e a formular ideias práticas sobre o assunto, além de fazer intervir a crítica neste tipo de trabalho.
Le-Duc também cita a obra História da Catedral de Noyon, escrita por Vitet anos mais tarde, em que constata as etapas percorridas pelos estudiosos e pelos artistas ligados ao mesmo estudo: “Com efeito, para conhecer a história de uma arte, não é suficiente determinar os diversos períodos por ela percorridos em um determinado lugar; é necessário também seguir sua trajetória em todos os lugares em que foi produzida, indicar as variedades das formas de que sucessivamente se revestiu e traçar o quadro comparativo de todas estas variantes, levando em consideração não só cada nação, mas cada província de um mesmo país”. Seria necessário citar boa parte de seu texto para demonstrar o quanto progrediu no estudo das artes medievais.
Já em 1835, Vitet havia abandonado a Inspeção Geral dos Monumentos Franceses para presidir a Comissão dos Monumentos Históricos e suas funções agora eram confiadas a P. Merimée e é em torno destes dois estudiosos que se forma o primeiro núcleo de artistas com o intuito de penetrar no conhecimento íntimo destas artes esquecidas. Nesta época, foram executados muitos restauros, muitos edifícios foram não só estudados, mas também preservados da ruína, na França.
O autor evidencia novamente que o programa de um restauro era então algo inteiramente novo. Para ele, os restauros realizados anteriormente não eram outra coisa senão substituições ou composições fantasiosas, mas que tinham a pretensão de reproduzir formas antigas. A Igreja de Saint-Denis foi o local onde se exercitaram os primeiros artistas que se interessaram pelo restauro. Le-Duc diz que durante trinta anos a construção sofreu todas as mutilações possíveis e foi necessário detê-los para retornar ao programa de restauro fixado pela Comissão dos Monumentos Históricos.
Tal programa promove que cada edifício ou parte deste deve ser restaurado no estilo que lhe é próprio, não só como aparência, mas também em sua estrutura. Portanto, é necessário antes de qualquer trabalho de reparação, o conhecimento da época e o caráter de cada parte, segundo ele “compor uma espécie de dossiê apoiado em documentos seguros, seja através de notas escritas, seja de levantamentos gráficos”. Mais a frente, ele diz que os monumentos de certa época e de certa escola podem ser restaurados por artistas de fora da província em que está o edifício e que isso pode levar a questões como quando se trata de restaurar, quer sejam as partes primitivas ou não, deve-se restabelecer a unidade de estilo comprometida, ou então reproduzir o todo com as modificações posteriores? Para ele, a escolha severa de uma das alternativas pode apresentar riscos.  Por isso, o arquiteto encarregado por um projeto de restauro deve ser um construtor hábil e experiente e deve conhecer os processos construtivos adotados nas mais variadas épocas e escolas de arte.
O autor então segue seu texto com várias demonstrações de como se deve prosseguir em diversas ocasiões, fazendo sempre valer a ideia de que princípios absolutos podem conduzir a absurdos, quando falamos de restauração. No caso de se refazer partes de monumentos dos quais não restam vestígios, por necessidades construtivas ou para completar uma obra mutilada, o arquiteto encarregado deve se imbuir do estilo próprio do monumento cujo restauro lhe foi confiado.  A visão positivista do autor se revel novamente quando ele diz que “existe uma regra dominante que é necessário sempre ter presente: não substituir as partes retiradas senão por outras, executadas com materiais melhores, mais duráveis e perfeitos” para que o edifício passe ao futuro com uma duração maior do que a que ele teve até então.
Outra observação é que cada elemento deve ser proporcionado em relação ao monumento para o qual foi composto. Caso a proporção seja alterada, o elemento tornar-se-á disforme. Além disso, deve-se reforçar as partes novas, aperfeiçoando o sistema estrutural para atingir maiores resistências, estudando previamente o comportamento deste sistema. A escolha dos materiais também faz parte dos trabalhos de restauro, e todos material retirado deve ser substituído por um de qualidade superior. Deve-se sempre ter meios de prevenir acidentes, para inspirar confiança aos operários e também prever qualquer consequência durante o processo. 
Para Viollet-Le-Duc os trabalhos de restauro forçaram os arquitetos a somar conhecimentos, a se relacionarem mais com os operários, a instruí-los e formar núcleos. Outra consequência benéfica foi que importantes indústrias ressurgiram, que a execução da obra muraria tornou-se mais cuidadosa e que o emprego de materiais se difundiu. A busca por recursos fez com que métodos regulares como a contabilidade ou a gestão de canteiros tivessem início, nessa época. O hábito de resolver problemas em construções foi introduzido nas comunidades, que até então mal construíam casas simples.
A partir de então o autor faz menção ao processo de centralização administrativa ocorrido na França, fala sobre suas inegáveis vantagens, mas fala também sobre desvantagens, já que as localidades secundárias ficavam excluídas de qualquer progresso artístico. Le-Duc fala sobre os trabalhos de restauro realizados na França sob a direção da Comissão dos Monumentos Históricos e do Serviço dos edifícios ditos diocesanos: “não só salvaram da ruína obras de incontestável valor, como também prestaram um serviço imediato”.  Para ele, estes trabalhos combateram, até certo ponto, os perigos da centralização administrativa no âmbito dos trabalhos públicos.
Ao retornar às dificuldades que se apresentam aos arquitetos restauradores e a indicação de um programa proposto por pessoas de espírito crítico, o autor diz que tais dificuldades não se limitam a fatos materiais uma vez que os edifícios restaurados tem uma destinação, não se pode negligenciar este aspecto de utilidade, para fechar-se inteiramente no papel do restaurador de antigas disposições fora de uso. O edifício não deve ser menos cômodo após a restauração, pelo contrário. O autor deixa claro que o melhor meio de conservação de um edifício é dar-lhe uma destinação, desde que satisfaça plenamente todas as necessidades que esta destinação impõe e sem que seja necessária alguma mudança. “O melhor a fazer é colocar-se no lugar do arquiteto primitivo e supor o que ele faria”. Sobre a colocação de novos elementos, principalmente aqueles que podem aumentar o conforto dos usuários ou os que podem evitar acidentes, Le-Duc diz “não devem ser adotados senão em casos extremos; mas é necessário também convir que eles são muitas vezes impostos por necessidades imperiosas; (...) para evitar mutilações e acidentes, é compreensível”.
A fotografia parece ter assumido um papel importante nos estudos científicos e no restauro dos edifícios antigos. Com os meios comuns da época, como o desenho e a câmera clara, era comum cometer algum esquecimento, descuidar de vestígios pouco evidentes, mas com a câmera fotográfica as imagens são irrefutáveis e se tornam documentos que podem ser consultados sempre. Sobre isso, ele diz que “nos restauros jamais será excessivo o uso da fotografia, pois muito frequentemente se descobre num negativo aquilo que passara despercebido no próprio monumento”
O autor finaliza seu verbete atentando para que no âmbito do restauro, um princípio dominante é aquele que leva em conta cada indício indicativo de uma disposição. “O arquiteto só deve ficar inteiramente satisfeito e colocar os operários na obra quando encontrar a combinação que melhor e mais simplesmente se adeque. (...) Decidir uma disposição a priori, sem tê-la confrontado com todas as informações necessárias, significa cair no hipotético, e nada é mais perigoso que a hipótese”.

Conclusão: 
     Viollet Le-Duc ao negar o ato de conservar, reparar ou refazer, afirma a restituição da obra, ou seja, a reprodução de sua forma original, como o conceito que fundamenta a restauração. Em toda a modernidade do conceito e da prática da restauração em sua época, podemos destacar a visão racionalista e positivista em várias partes de sua fala, principalmente quando aborda o futuro das edificações restauradas.
Para ele, a arquiteto restaurador deve se conscientizar das formas e estilos do objeto a ser restaurado, bem como sua identificação ao longo da história da arte, ter postura crítica e analítica a partir de seu conhecimento, além das técnicas utilizadas para sua construção, sua estrutura, anatomia e temperamento, pois antes de tudo, é necessário que se reviva a arquitetura. O arquiteto deve compreender a obra como se fosse de sua própria concepção. Tendo em mãos os meios condizentes para a reparação do edifício e dominando as técnicas necessárias, o arquiteto poderá iniciar seus trabalhos de restauração. Outra observação importante é que o profissional não deve seguir uma conduta rígida e absoluta no que desrespeito às decisões a serem tomadas diante de dificuldades comuns no processo da restauração. Escolhas severas podem apresentar riscos à obra. Porém, afirma que tais dificuldades não estão limitadas a fatos materiais uma vez que os edifícios restaurados devem ter uma destinação e o melhor meio de conservação de um edifício é exatamente dar-lhe uma destinação.
Os trabalhos de restauro tiveram várias consequências benéficas para toda a comunidade, pois forçaram os arquitetos a somar conhecimentos e a formar núcleos. O hábito de resolver problemas em construções foi introduzido nas comunidades, que até então mal construíam casas simples. A busca por recursos fez com que métodos regulares como a contabilidade ou a gestão de canteiros tivessem início, nessa época. E a invenção da fotografia como a temos hoje parece ter assumido um papel essencial nos estudos científicos e no restauro dos edifícios antigos. 


Referências bibliográficas:
            VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel; DOURADO, Odete (apres. e trad.). Restauro. Salvador: Mestrado em Arquitetura e Urbanismo/UFBA, 1996.

Por Jéssica Rossone

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